Um dos grandes polemistas do nosso tempo, Slavoj Zizek reverbera na atual crise na Palestina. Na primeira década do século XXI, foi Zizek que apontou, com toda razão, que a recomposição política do sistema se deu, vejamos, pelo retorno do fascismo ao debate público pela via da criminalização da tradição comunista – e Zizek identificou, com razão, a construção de simetrias falsas como o locus recorrente dessa guinada.
Nos seus constantes giros, o pensador esloveno se candidatou à presidência de seu país pelo Partido Liberal-Democrata para, depois, ser um dos principais expoentes da recolocação do comunismo no debate global. Ironicamente, os últimos anos são marcados por uma nova inflexão de Zizek, na qual ele redobra a aposta no que ele mesmo percebe que é um ideal de Europa e de europeísmo.
E, nesse sentido, a nossa leitura do recente artigo de Zizek sobre a questão Palestina, “Israel – Estado teocrático”, se estrutura em confrontar o Zizek do início do século com o atual. No original, no blog da Editora Boitempo, consta como título “Israel e Hamas: onde está a verdadeira linha divisória?”– uma boa questão. A “linha divisória” para marxistas é sempre o lugar do antagonismo.
Onde está o antagonismo real?
Com toda razão, Zizek inicia seu artigo dizendo ser preciso “localizar este ataque [do Hamas] no seu contexto histórico – tal contextualização de forma alguma o justifica, apenas esclarece por que e como ocorreu”; a partir daí, Zizek faz uma longa exposição da opressão dos palestinos, o caráter fascista do atual governo israelense e muitos outros detalhes, para depois concluir que:
“Portanto, sim, apoio incondicionalmente o direito de Israel de se defender contra tais ataques terroristas, mas ao mesmo tempo simpatizo incondicionalmente com o destino desesperado e cada vez mais sem esperança dos palestinos nos territórios ocupados. Aqueles que pensam que há uma ‘contradição’ nesta minha postura são aqueles que efetivamente representam uma ameaça à nossa dignidade e liberdade”.
A contradição, no sentido da lógica clássica, pode ou não existir no caso, mas tudo depende do que significa, exatamente, “o direito de Israel se defender” e como isso se relaciona com “ter simpatia pelos palestinos”, localizar essa afirmação no contexto histórico, como o próprio Zizek propôs. Mas isso vai além. Do ponto de vista de Hegel, que Zizek conhece bem, dizer que algo é “contraditório” não implica em “ameaça” a nada.
A “contradição” é, pois, inerente às coisas e, também, às sociedades humanas – dentro delas mesmas e na relação com as demais. Portanto, o conceito mais adequado para se questionar é se haveria então um antagonismo, e não uma contradição, entre o “direito de defesa de Israel” e a “simpatia pelos palestinos”. Seguindo o que o próprio Zizek propôs, temos de localizar o contexto histórico dos dois elementos de sua conclusão.
De início, Zizek defende “o direito” de um Estado e simpatia com um povo, pois os palestinos não só não têm um Estado como, ainda, mesmo o território que teria restado da partilha da Palestina no final dos anos 1940 está ocupado militarmente por Israel na forma colonial. Ou seja, toda a Palestina, mesmo nos termos dos Dois Estados, está ocupada. E não só: impossibilitada de organizar efetivamente seu Estado.
Israel, enquanto Estado que é, tem o dever de defender seus cidadãos, não um direito. Assim como tem o dever de cumprir o direito internacional, o que não faz segundo as próprias Nações Unidas – uma vez que ocupa militarmente e coloniza território palestino. A concepção de um Estado como, em princípio, detentor de direitos é capciosa, uma vez que o que se espera é a sujeição destes à ordem internacional e interna.
Afirmar a ação de resposta israelense como direito – e não como dever – concede uma prerrogativa imensa ao governo de Netanyahu: estabelecer uma ação militar contra uma entidade que lhe é assimétrica – isto é, um território ocupado e, especificamente, uma cidade que já se encontrava sob cerco antes mesmos dos trágicos fatos que desencadearam esta conversa.
Impossível que, nos próprios termos do próprio Zizek, ele não tenha caído em uma simetria falsa. Uma vez que o “direito de defesa” israelense aparece em uma declaração de guerra sem adversário, uma cruel ironia, pois “a outra parte” já não é um Estado pela ação política, econômica e militar do próprio Estado de Israel. Ou seja, a simetria falsa se dá, no caso, entre um Estado rico e poderoso contra uma população pobre alijada do direito a ter direitos.
Ainda mais, lembremos que Israel não cumpriu os Acordos de Oslo, que deveriam pôr fim, já a partir dos distantes anos 1990, a esse “conflito” com feições de agressão. Por sinal, os dois signatários daquele acordo, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, terminaram assassinados: Rabin, vítima de um homicídio efetivo, e Arafat deixado para morrer, cercado em seu quartel-general.
Desumanização e terrorismo
A equiparação entre Israel e Hamas, por sinal, é outra assimetria. O Hamas é um movimento político, com seu braço armado e partidário, não um Estado. A questão não é exonerá-lo, mas nos questionarmos do seguinte: como é possível exigir ou esperar da população de Gaza, uma prisão a céu aberto e um campo de concentração, uma conduta ética sendo que suas vidas, há muito, foram desumanizadas?
Lembremos da afirmação do ministro da Defesa de Israel, de que seu país estaria “combatendo contra animais”. O que coloca uma outra questão: quem teria tornado o povo de Gaza em animais? Supondo que isso seja verdade, não custa lembrar que animais não têm responsabilidade jurídica, como culpá-los? Uma vez que palestinos são inquestionavelmente humanos, o crime, portanto, é ter reduzido eles, na prática e no discurso, à condição animal.
Nem é preciso retroceder ao passado, ainda nos anos 1940, quando milícias fascistas usavam corriqueiramente do terrorismo como prática de expulsar palestinos de suas terras – conforme denunciaram Albert Einstein, Hannah Arendt e outros intelectuais judeus no New York Times. Basta observarmos como a ocupação total do território palestino, nos últimos anos, veio acompanhada de uma estranha doutrina militar chamada “Guerra Rizomática”.
Osvaldo Baigorria a definiu como um “modelo descentralizado e irregular para enfrentar a resistência palestina em seu próprio terreno”. Por meio dela, foram diluídas as distinções entre civis e beligerantes, campo de batalha e áreas civis, em escala molecular, para fazer jus à filosofia deleuzo-guattariana que lhe nomeia e inspira – e não poderia ser diferente, pois “do outro lado” não há um exército regular.
Ou seja, o contexto prévio da ação do Hamas já apontava para uma doutrina estabelecida, e praticada, nas forças armadas de Israel acerca da indistinção sistêmica entre campo de batalha e áreas civis, beligerantes e inocentes desarmados etc. Os civis palestinos já eram alvos, assim como suas moradias. O ato bárbaro do Hamas em “mirar em civis” não foi uma ruptura com nada que não estivesse colocado, na teoria e na prática, naquele cenário.
Tudo isso é uma ironia mais cruel, uma vez que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari eram, como se sabe, notórios militantes da causa Palestina. Mais irônico ainda é que a apropriação inadvertida da obra deles se coaduna às críticas de Zizek aos dois, apontando-os como involuntários precursores do capitalismo pós-moderno – embora isso, paradoxalmente, ponha em curto-circuito o argumento de Zizek sobre o caso concreto.
Nem Israel foi o primeiro a aplicar essa lógica em campo como, ainda, não é apenas a extrema direita do país a ser exclusiva nessa ideia de mais radicalidade. Pois, vejam bem, quem tem defendido isso não é apenas o direitista radical Benjamin Netanyahu. Uma série de outros políticos, de diversos outros partidos, têm feito discursos e já há muito emulam essas práticas, que se tornaram a governança israelense.
Naftali Bennett, um breve ocupante da cadeira de premiê nos últimos anos, é quem questionou um jornalista por perguntar sobre civis palestinos. Isaac Herzog, chefe de Estado do país e membro da oposição, igualmente sentenciou que “não há civis inocentes em Gaza”. Vale aqui, talvez, a advertência de Matt Kaminer sobre as eleições israelenses de 2019: havia “uma centena de Netanyahus”.
Qualquer “localização de contexto histórico” mínima aponta que a questão de Israel não concerne apenas à sua extrema direita. Nem antes, uma vez que a violência de Estado contra os palestinos começou durante as décadas da hegemonia da “esquerda sionista” e, hoje em dia, o bloco majoritário da oposição concorda com Netanyahu acerca da culpa infinita dos palestinos – fazendo declarações inclusive mais duras que o próprio premiê.
Localização do contexto histórico como cartografia da luta de classes
A lembrança da denúncia de Einstein e Hannah Arendt sobre o massacre de Deir Yassin e a “Guerra Rizomática” é, apenas e tão somente, que existe um nexo entre práticas terroristas milicianas na formação de Israel, as quais persistem no interior do país, hoje uma potência militar dotada de um exército regular muito bem treinado. Isso não é tão simples como falar de relação causa-efeito, mas de localizar o contexto histórico.
A teoria dos “dois demônios” no contexto palestino nos remete à lógica, ainda que de um modo diferente, das próprias denúncias que Zizek fez acerca da equiparação entre Stálin e Hitler como meio para naturalização do líder nazista – e, não só, como isso serviu à aceitação do fascismo de volta à mesa de jogo na política ocidental do século XXI. O antagonismo simétrico e equiparável novamente vem à tona.
É muito fácil, humanistas que somos, recusar, ao mesmo tempo, Hamas e Netanyahu, mas é impossível supor uma simetria entre as partes, negando que Israel não detenha todos os meios – inclusive militares – para fazer diferente enquanto os palestinos estão sob estado de necessidade na forma de resistir – contra um poderoso exército regular que recorre a práticas e técnicas anômicas, com o patrocínio dos Estados Unidos, a única superpotência.
O mesmo vale para reiterada afirmação da necessidade da “Solução dos Dois Estados”, quando, na verdade, ela já é falsa em dois sentidos: (i) ela já foi aplicada na partilha da Palestina, e seu resultado é o atual; (ii) por que ainda falar nela se um Estado já está muito bem formado e protegido? Ou seja, a única solução possível atualmente é sobre um Estado, qual seja, aquele que não existe.
Por que os intelectuais ocidentais não foram capazes de colocar a questão da Palestina novamente na mesa, enquanto a resistência palestina se limitava a gestos pacíficos e políticos? A questão não é a legitimidade da ação do Hamas, mas de como a grande intelectualidade ocidental deslegitima ou é incapaz de ouvir a resistência pacífica. O fato de voltarmos a falar sobre Palestina depois disso é um sintoma da indiferença ocidental.
Talvez Zizek, de uma forma inversa, tenha razão de que não há “contradição” entre o tal “direito de defesa de Israel” e a “simpatia pelos palestinos”, pois essa última é inócua para qualquer coisa – assegurada não por um “direito”, no sentido técnico do termo, mas em uma espécie de prerrogativa imperial em relação a qual a simpatia desinteressada não faz diferença nenhuma, nem é capaz de salvar ninguém.
Há muitas décadas, um famoso filósofo chinês disse que “Os socialistas utópicos estão sempre a tentar persuadir a burguesia a ser caridosa” e que “A base é a luta de classes. O estudo da filosofia só pode vir depois”. Sem a luta de classes não há História, mas também não há Filosofia – muito embora, sem a consciência ou a admissão disso, possa haver uma metafísica que, querendo ou não, redunda no mundo dos poderosos.
Há uma dinâmica de acumulação capitalista que explica a situação insólita dos palestinos não terem seu país, o que concerne não apenas à Palestina, mas à economia mundial e a importância do Oriente Médio nesse arranjo. A exploração do trabalho por uma elite israelense, nos ajuda a entender tensões internas no país e contra os palestinos, mas também sua sustentação pelo arranjo de potências comandadas pelos Estados Unidos.
O erro de se analisar decorrências bélicas da luta de classes sem… analisar a luta de classes – e sua expressão internacional, o conflito entre o imperialismo e os colonizados – é derivar em análises que anulam a identificação dessas opressões, por se esquivar das relações materiais que produzem e sustentam esses conflitos. No fim, a única “linha divisória” existente é o enorme muro construído por Israel para alijar os palestinos de sua terra.
Colocar Zizek contra Zizek não é denunciar qualquer hipocrisia do filósofo esloveno, mas sim, ao confrontar seus escritos com suas posições factuais, atentarmos para a insuficiência do idealismo. Essa tensão ajuda a construir, involuntariamente, a metafísica que serve como matriz intelectual do discurso dominante, o que antes de demonizar “um dos lados”, equipara o que é desigual. É preciso colocar a dialética de Zizek de cabeça para baixo.
(Publicado originalmente em A Terra é Redonda)
Sobre os autores
é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).